Ambientalista e culto, D. Dinis seria um hippie-chic do século 21. E esta seria a sua casa
E se D. Dinis vivesse nos dias de hoje: como seria a sua casa?
Assim que se ouve o nome do rei D. Dinis, a primeira coisa que vem à cabeça é o Pinhal de Leiria. E pode estar aí um dos grandes mitos sobre a monarquia portuguesa, que o historiador João Ferreira tenta desmistificar: “O Pinhal de Leiria não foi mandado plantar por ele, já era muito antigo e fazia parte do tecido florestal português.” Então de onde vem o mito? “A madeira era o combustível daquela época, servia para construir, para aquecer, para tudo”, explica o historiador. E é no tempo de D. Dinis que o Pinhal de Leiria substitui o pinheiro manso pelo pinheiro bravo, mais resistente, e mais próximo do que hoje conhecemos (pelo menos, até aos grandes incêndios que assolaram o país nas últimas décadas). Há, portanto, “um fundo de verdade nessa história” da associação entre o Pinhal de Leiria e este rei.
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Ao tentar imaginar como seria a casa de D. Dinis no século XXI, falámos com o investigador João Ferreira, autor de obras como a “Histórias Rocambolescas da História de Portugal”, para uma série de quatro artigos, feita em parceria com o Imovirtual, que inclui, por isso, mais três monarcas: D. Afonso Henriques, D. João V e D. Maria II. Este é, por ordem cronológica, o segundo artigo da série que, a partir da personalidade e dos reinados de cada um destes reis, permite imaginar casas, roupas e objetos decorativos que estes monarcas gostariam de ter se tivessem o século XXI à disposição.
E se eles têm à sua volta um historial de lendas, a de D. Dinis e do Pinhal de Leiria é das mais fortes, porque foi aproveitada pela historiografia do Estado Novo, de Oliveira Salazar, para construir a narrativa de que a madeira que saía do Pinhal era pensada para construir as naus e caravelas que os navegadores portugueses haveriam de usar nos Descobrimentos. “É uma imagem poética que tem um problema: não foi verdade”, conta João Ferreira.
Não foi bem a mesma madeira, mas é inegável que D. Dinis era um entusiasta dos pinhais, da agricultura, e alguém tentou sempre fixar populações no interior do país — uma questão que ainda hoje nos ocupa os dias e as preocupações. “Havia uma preocupação de valorizar os terrenos”, lembra o historiador, e isso tinha dois motivos: por um lado, a vocação do próprio rei, e por outro o facto de ter sido o primeiro a não ter de se meter em todas as batalhas para expandir o território. Isso ficou para o pai, avós, bisavós, e até para o trisavô, o primeiro rei dessa série de Portugal, D. Afonso Henriques. As guerras do tempo de D. Dinis foram mais para fixar fronteiras. As suas preocupações foram sempre outras, daí o cognome “O Lavrador”.
Agostinho da Silva, um dos filósofos mais relevantes do século 20 português, escreveu que D. Dinis “andava pelo país, de concelho em concelho”, sempre nessa senda de valorizar o território — não é estranho que o rei tenha concedido tantos forais, que significavam a criação de novos concelhos.
Mas do reinado de D. Dinis não podemos subestimar uma das criações mais relevantes da história de Portugal: a Universidade de Coimbra, uma das mais antigas do mundo. Isto mostra a importância que Dinis sempre deu à cultura, e foi “um sinal importante de que Portugal queria estar a par com os outros reinos cristãos da Europa”, como nota João Ferreira. Em 1290, quando a Universidade nasceu, ainda se chamava Estudo Geral, e tinha sede em Lisboa, onde hoje fica o Largo do Carmo, tornando-se assim contemporânea de universidades de enorme relevo, como a de Oxford, em Inglaterra, praticamente da mesma altura, ou a Sorbonne, em Paris, um pouco mais antiga.
Só passados 18 anos é que as instalações foram definitivamente mudadas para Coimbra. Mas a ligação entre D. Dinis e Coimbra é eterna. E é por isso que se ele tivesse nascido no século 20, seria hoje reitor da Universidade, um homem que cruzaria o amor pela agricultura com o amor pelas letras, pelos alunos, como prova de “alguém que sempre quis trazer os melhores para Portugal”, nas palavras do historiador João Ferreira. Que melhor cidade para ele viver do que a cidade dos estudantes?
Entre os livros e as plantas: seria assim que D. Dinis repartiria o seu tempo nos dias de hoje. E é precisamente essa paixão pela natureza, a dedicação às letras e o apreço pelo interior do país que levariam ‘O Lavrador’ a uma moradia com um jardim bem vistoso, algures na zona de Coimbra
O amor de D. Dinis, poeta e trovador, estendia-se à língua portuguesa e é bem conhecido, mesmo entre os mais afastados da história. Basta lembrar alguns dos versos de uma das músicas que fez mais sucesso no hip-hop português do início do século. Em 2006, Sam the Kid escrevia uma ode à língua portuguesa e aos que cantam em português, em Poetas de Karaoke. E lá aparece a referência ao rei:
Isto é para todos, não é só para MCs /
Isto é para Tugas que nunca escrevem na língua raiz /
Querem ser internacionais mas tão cá no país /
E nunca são originais, são Nova Iorque ou Paris /
Sempre fui D. Dinis, vocês são de onde der mais jeito /
Onde houver mais fama e proveito /
E se houver mais grana é aceite /
E se houver uma dama com bom peito /
Pensam que isso dá respeito?
Foi D. Dinis quem instituiu o português como língua oficial da corte e mandou redigir todos os documentos oficiais em língua portuguesa, substituindo o latim. É provável que hoje se mantivesse como um dos puritanos da língua, que recusam o novo acordo ortográfico. Mas o certo é que seria um ávido leitor dos novos nomes da literatura portuguesa, brasileira, angolana, moçambicana, cabo-verdiana e de vários outros países de expressão portuguesa.
E o que mais fazia bater o coração de D. Dinis? “É um rei amigo do ambiente”, ri-se João Ferreira. Seria um António Guterres do século 21, alguém que, como o secretário-geral das Nações Unidas e ex-primeiro-ministro de Portugal, tem no discurso das alterações climáticas uma das suas principais bandeiras. “É uma figura muito curiosa”, acrescenta ainda João Ferreira, porque combina um lado “muito culto” com esse lado mais próximo da terra e da agricultura. Desafiámos o historiador a colar um rótulo a D. Dinis e a resposta veio pronta. “Seria um hippie-chic culto.” A sua casa teria no jardim e no escritório-biblioteca os espaços mais nobres.
Além do cognome oficial, D. Dinis é conhecido por muitos outros, como o Rei-Agricultor, o Rei-Poeta ou o Rei-Trovador. Ele que foi coroado aos 17 anos, mesmo que se tenha posto a hipótese de a mãe ficar como regente, ele que quase viu os filhos e herdeiros quase a entrar em guerra, foi sobretudo um rei da paz, um diplomata com habilidade para gerir conflitos. E é essa paz e silêncio que transparece na casa de 2021 do rei, com cadeirões de madeira virados para o sol, onde o professor-reitor pudesse passar longas tardes de leitura, com materiais reaproveitados porque o planeta não pode permitir mais estragos, e com plantas, as suas adoradas plantas.
Um acidente nos anos 1930 abriu o túmulo de D. Dinis, em Odivelas, e fez descobrir que o rei foi um homem relativamente baixo (cerca de 1,65 metros, o que nem é tão pouco para um português médio da época), ruivo e de compleição física bem interessante. Aliás, para quem morreu aos 63 anos, é impressionante ter conseguido andar a cavalo até quase ao fim da vida. O Dinis de hoje até podia passar tardes a ler, a escrever, a compor cantigas, mas o aspeto físico não seria deixado ao acaso.
No século XXI, D. Dinis seria um ‘hippie-chic culto’ que apoia as causas ambientais e recusa o novo acordo ortográfico. Do alto dos seus singelos 1,65 metros de altura, não seria rei, mas estaria ligado a um cargo de influência, o de reitor da Universidade mais antiga do país. A biblioteca seria o local para lêr, escrever e compor músicas, não uma das suas muitas alcunhas ‘Rei-trovador’
Além de ler, a secretária de Dinis tem espaço para escrever, espalhar e rascunhar. O rei deixou uma vasta obra, da qual fazem parte mais de 100 cantigas líricas e satíricas em galego-português (a variação que está na origem do português de hoje), num tempo em que o amor, o escárnio e o maldizer eram presença obrigatória na literatura. A mais conhecida fala, claro, de flores. E é um desafio curioso entrar na linguagem da época.
Ai flores, ai flores do verde pino /
Se sabedes novas do meu amigo? /
Ai Deus, e u é? /
Ai flores, ai flores do verde ramo /
Se sabedes novas do meu amado /
Ai Deus, e u é? /
Se sabedes novas do meu amigo /
Aquel que mentiu do que pôs conmigo? /
Ai Deus, e u é? /
Se sabedes novas do meu amado /
Aquel que mentiu do que mi há jurado? /
Ai Deus, e u é? /
Vós me preguntades polo voss’amigo /
E eu bem vos digo que é san’e vivo /
Ai Deus, e u é? /
Vós me preguntades polo voss’amado /
E eu bem vos digo que é viv’e sano /
Ai Deus, e u é? /
E eu bem vos digo que é san’e vivo /
E será vosco ant’p prazo saído /
Ai Deus, e u é?
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